RETRATOS de LITERATURA ILUSTRADA - Prosa & Poesia & Fotografia
quarta-feira, 10 de setembro de 2014
Recreio
Quando se é criança e se está na escola, esse é o momento mais esperado entre os deveres. Um direito assistido. Não é preciso lutar por ele, procurar brechas, fazer conchavos, negociações políticas... ou pagar por fora. Não é preciso trocar nada por coisa alguma, abster-se de encargos, debandar de obrigações. Pode-se até não fazer tarefa... e ainda assim ter direito a ele. Que delícia, que beleza !
Ah, a gente cresce e isso muda... muito ! Adultos, quantos brigam consigo mesmo e com o resto por um retorno relativo, uma fração daquele mundo, um instante assegurado, garantido de recreio ?! Por uma hora de fazer nada, ou fazer tudo... em contraponto: tempo para temperar a salada, equilibrar o conjunto. Pelo ensejo de refrescar a cuca, cansar o corpo - ou não - para descansar a cabeça, de novo, depois, plantando sono bom, recarregando baterias. Pelo presente de refrescar o que era imperativo exercitar em sala, que era dever saber, de cor às vezes, fazendo força.
Sim, pensar parecia cansar... e cansa, de fato, quando não é possível intervalo de trégua. Esses momentos nos eram assegurados e, ah, como eram doces ! Soava o sinal, uma campainha mágica, e o corpo já estava em movimento, despregando bumbum da cadeira. Uma perna apontava para fora, sem comando consciente, antes mesmo de uma segunda nota entoar o que era música aos ouvidos. O mero aceno de abertura da porta iluminava interiores... de seres. A saída, em disparada, à solta, sem medalha adiante, colocava os pequenos em corrida por festa: quem chegava primeiro lá fora ganhava o contentamento de mais alguns segundos de graça. E que prêmio melhor ?! Era o êxtase !
O esvaziar da sala, em bando, enchia o coração em alegria imensa, nem percebida como tal, tão espontânea e natural ! Fazia parte da infância, integrava a existência sem sequer ser cogitada. E agora, onde está ?
A maioria de nós, responsáveis, importantes, bem sabidos, briga por migalhas dela. Colocar comida à mesa não basta. É preciso ter um mundo de aparatos, tecnologia de ponta, recursos avançados para ser feliz. Esconde esconde, pega pega ? Tá brincando ! Só se forem de si mesmo, no escuro das almas carentes, ocupadas, vestidas de responsáveis, disfarçadas de competentes... famintas por algum enlevo, mansidão mental.
Esconde esconde, pega pega ? Só se for por mais... volume, posse, carrão. A garagem, às vezes cheia, a conta no banco abarrotada, escondem muita gente pobre, amargurada, só... por dentro: murcha, vazia de alegria. Gente que procura mas não encontra o estar sereno, contentamento ameno, leve estado de ser. Que não sabe o que é energia, estar vibrante, extasiado com o aparente pouco, essencial e sutil.
É gente que desaprendeu a brincar no intervalo dos deveres. Não busca descanso, sossego, encanto em lugar certo, bem debaixo da vista, em coisas simples, ao alcance, inclusive, de passar despercebidas. Gente que acha que ganha enquanto perde saúde, fazendo vales pra depois, trocando por mais papel... de que nem tempo tem para dispor direito. Gente que vive esgotada, constante mente pela metade, aos pedaços, pelas beiradas do bem-estar... pelas calçadas da vida, ansiando, desejando, querendo entrar.
Gente que ainda não sabe... mas trocaria bastante do palpável por uns momentos de placidez, enleio, arrebatamento. E deveria mesmo trocar ! Ter a ousadia de não esperar o sinal - da exaustão, da doença, do quase adeus - para abrir a porta, correr pra grama, rolar na lama, mergulhar algo mais... ou simplesmente fazer aquele nada que é tanto, importante. Ao menos de vez em quando. Ter a coragem de mudar... só um pouquinho. E ajustar velas, devagar. E nadar outras águas, passear por outras praias... sentir o vento, pra variar. Deixá-lo adentrar, abstrato, como bem concreto, fundamental à higidez mental. Permitir-se. Reconquistar... o que era seu. E alimentar-se de belezas, delicadezas, sutilidades... ao menos de vez em quando. Embevecer-se do inestimável ! Mover-se muito, parando um pouco... para viver melhor !
Entre tanto, com tudo, doces recreios pra você !